quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

...minhas queridas velhas...


As velhas andam pelos corredores da vida como rosas cálidas, sustentadas em sua natureza frágil, morna, leve. Trazem consigo a pele vincada pelas risadas e pelos prantos como as pétalas murchas da rosa que está morrendo. As velhas sabem que estão morrendo, mas ainda se preocupam com os filhos, com o penteado, com o batom e a roupa bonita. Agora riem gostosamente das caretas disfarçadas de sorrisos dos jovens que acham que nunca serão velhos. As velhas tb acharam isso, um dia. As velhas sustentam sua fragilidade em pernas já trêmulas, que outrora embalaram balanços, sonhos apaixonados, filhos chorosos e parceiros famintos. Em suas pernas, como nos galhos fracos da rosa que se despede, apostam as velhas em mais um pouco de caminho trilhado na vida. Elas olham pra trás e têm a lembrança recheada, rica em barulhentas gargalhadas e sofridos choros enlutados. As velhas, queridas velhas, sustentam a fêmea que há em suas essências até o fim, não se descuidam do perfume, do botão bem fechado que é pra não pegar frio, do cabelo bem preso, que não atrapalha a visão que ainda lhes resta nos últimos momentos. As velhas seguram-se na minha mão para os seus últimos passos, seus últimos movimentos arriscados, seus últimos sopros de vida. As velhas seguram na minha mão até o fim, assim, não morrerão com fome de pele. As velhas sabem bem despedir-se da vida com dignidade, candura e a beleza da rosa, que seca aos poucos e marca, inscreve nos livros a forma que um dia tiveram. Assim as velhas inscrevem no meu peito, as sutis diferenças entre a fraqueza e a fragilidade, entre a força bruta e a força de um caráter, entre a leveza insustentável de uma vida insana e a leveza terna da certeza de terem feito o melhor que puderam, sempre. Amanhã, levarei mais uma vez as velhas pelo corredor, e velhas ficarão as minhas lembranças desse tempo tão duro e tão rico, velhas serão as minhas certezas, todas elas, pois a vida se renova sempre, a cada passo pelo corredor, é a vida que está renovando-se e se re-inscrevendo mais uma vez.

Absolutamente longe

Absolutamente longe de quem eu fui, das origens dos meus pensamentos, das minhas idéias puras, que nasceram livres e distantes deste mundo. Estou só. Cercada de muita gente, gente que julga meus atos e o que pensam ser as minhas idéias, mas não fazem idéia de quem sou, pois estou absolutamente longe de mim. Falta-me a terra, entranhando-se por baixo das minhas unhas, por baixo dos cabelos, sujando-me o rosto, vincando-o por entre o suor. Faltam-me as estrelas quietas, em seu diálogo mudo, conversando com quem eu fui. Faltam-me as árvores galhadas imensas para que eu escale o mundo, para que escale a minha vida, para que eu leia em suas ranhuras que faço parte da sua natureza selvagem, que não sou diferente do seu envelhecimento tácito. Falta-me a calma para observar a ternura do olhar do cachorro velho, que estará sempre ali, mesmo que eu já não o veja mais.
Desprendi-me de quem eu sou. Agora apenas funciono, faço parte das engrenagens de uma vida que me pegou de surpresa, e me roubou de mim. Absolutamente longe de quem eu fui, deparo-me com uma estranha, de repente, uma mulher que eu desconheço, desaprovo, e desfaleço ao olhar-me no espelho e ver que essa mulher, sou eu.
Já não sei onde estão meus livros, perdi tudo o que já escrevi, perdi as lembranças das minhas dores, das minhas euforias, dos meus assaltos de medo. Perdi o medo. Perdi a fantasia, perdi a poesia. Não sei mais dançar, meus pés agora não me guiam pela suavidade de um movimento extasiado de sentimentos. Hoje, meus pés são armas que me defendem do que eu já não temo.
Perdi parte de mim na estação de trem, na hora não percebi e não chorei. Nunca mais chorei, pois já estava me afastando de mim. Esperei, esperei, esperei. Sonhei, desejei, enlouqueci. Hoje, com as lágrimas secas de um pranto esquecido, percebo, apenas, que sobrevivi.

CT