sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

मोरते digna


Vinicius escreveu o seu poema "O Haver" como um consolo diante da morte. "Resta essa obstinação em não fugir do labirinto / Na busca desesperada de alguma porta quem sabe inexistente / E essa coragem indizível diante do grande medo / E ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva..."




A morte anda sorrateira para muitos, porém, já me acostumei a sua presença tão solene, que já não me deixo surpreender assim tão facilmente. Não é tão indesejada como muitos podem pensar, não causa tanto sofrimento, como pode parecer. Alivia. Desamarra. Permite. Acalma.
É humana, é natural, fecha – ou dá continuidade – ao ciclo normal da existência. Silencia temores, acalma gemidos, embala saudades.
Sim, a morte digna é altruísmo de quem fica, humaniza até o último suspiro a existência.
Sr. João está morrendo, acompanho seu término até o fim. Num quarto de hospital, o odor fétido das carnes já imprestáveis envolve o ambiente. Gemidos, que outrora foram pedidos, súplicas por que o deixassem morrer, agora embalam o meu trabalho, que realizo em uma mentira cruel, a título de oferecer-lhe conforto até o fim. Agora já não existe conforto, a única possibilidade seria a morte. Já partiu deste mundo a sua alma, e está presa a um corpo apodrecido, que o segura, que o mantém às custas de oxigênio, de alimentos administrados em suas entranhas, remédios que protelam exaustivamente a sua tão sonhada despedida.
Em vida, teria enfrentado infinitas decisões o Sr. João, quem quer que tenha sido ele. Pode ter decidido por seus filhos, por outras vidas inclusive, pode ter sido obrigado a enfrentar escolhas cruéis, mas nada tão cruel quanto suprimir-lhe o direito de decidir sobre a própria morte. Se a enfrentaria lúcido, ainda em condições humanas, ou se entregaria seu destino final à pessoas que não fazem idéia de quem pode ter sido ou ainda é o Sr. João. Entregaria o final de sua existência a quem, a mando de modernas tecnologias, e pensamentos que incitam a perpetuar a existência da vida, sem importar a sua dignidade. Há uma nova ditadura pairando em hospitais e serviços de saúde, no mundo todo, que não permite a dignidade humana até o fim. Arrastam-se vidas, prolongam-se sofrimentos atrozes, mas a medicina e ciências afins estão no comando, propagando a idéia da morte-em-vida de pessoas que, naturalmente, já teriam conseguido despedir-se daqui.
Amanhã, mais uma vez, a título de conforto, realizarei fisioterapia no Sr. João, para que respire melhor – com mais qualidade – e para que sinta suas articulações moverem-se, para aliviar a tremenda dor que o invade, mas que agora cala por falta de forças, talvez mesmo por falta de lucidez. Espero, meu caro Sr. João, que a natureza (para quem crê, que seja deus) tenha tido piedade da sua alma, e tenha tirado-lhe junto com a voz e as súplicas para que o deixassem morrer em paz, a sua lucidez, a sua percepção do que ocorre em seu redor. Tomara que o senhor esteja (sobre)vivendo agora em meio a alucinações e viagens imaginárias em um mundo bom e justo, onde haja respeito pela dignidade humana, até o fim.

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